Geral

Violação de medidas protetivas cresce e expõe falhas na proteção à mulher em MS

Em 2025, Mato Grosso do Sul contabilizou uma média de 45 medidas protetivas solicitadas por dia

Em 2025 3 mil mulheres solicitaram medidas protetivas (Ilustração – Giovana Gabrielle, Midiamax)

A escalada da violência de gênero em Mato Grosso do Sul expôs as inúmeras falhas nas políticas de proteção às mulheres e evidenciou a urgência na adoção de medidas eficazes. Somente nos primeiros dois meses de 2025, seis mulheres morreram vítimas de feminicídio. Em paralelo, o número de medidas protetivas registrou uma média de 45 solicitações por dia, totalizando 3.401 pedidos até 16 de março. Os dados escancaram um cenário onde a ameaça segue presente, mesmo sob amparo da lei.

Entre 2023 e 2024, o número de processos por crimes de violação de medidas protetivas cresceu 37% em Mato Grosso do Sul, passando de 1.043 para 1.433, conforme dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Já os dados do painel de monitoramento da violência da Sejusp mostra um aumento de 42% no mesmo período, passando de 1.614 para 2.285.

Contudo, esse aumento contrasta com o crescimento das medidas concedidas no mesmo período, que passou de 13.981 para 14.229 – apenas 2%.

Média de 45 solicitações por dia

No ano passado, MS registrou 15.386 solicitações de medidas protetivas, das quais 14.229 foram concedidas. Já em 2025, apenas entre 1º de janeiro e 16 de março, foram solicitadas 3.401 medidas, com 1.022 concedidas – uma média de 45 solicitações por dia, segundo dados do Painel de Monitoramento de Sejusp. Já o número de descumprimento chegou a 623.

A nível nacional, o número de solicitações de medidas protetivas teve um salto de 43% nos últimos cinco anos. Somente no ano passado, o país registrou 579 mil medidas concedidas, enquanto em 2020 esse total era de 404 mil.

Essa disparidade entre pedidos e concessões em MS levanta questionamentos sobre os critérios adotados pelo Judiciário, a sobrecarga do sistema e demais entraves que podem comprometer a celeridade do processo e, consequentemente, a segurança das vítimas.

Nesse contexto, embora o alto volume de solicitações possa indicar um aumento na confiança das mulheres em buscar ajuda, os números também sugerem um possível agravamento da violência doméstica no Estado, especialmente diante dos seis feminicídios registrados neste início de ano.

Uma mulher morta a cada 11 dias

Expressão final das diversas violências que atingem as mulheres, o feminicídio foi responsável por seis mortes ocorridas neste ano em Mato Grosso do Sul, o que corresponde a uma média de uma mulher assassinada a cada 11 dias. Em 2024, as mortes violentas de mulheres também dominaram as manchetes jornalísticas. No Estado, 35 casos de feminicídio ocorreram ao longo do ano, sendo 11 em Campo Grande. Os dados da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública) indicam ainda que houve ao menos 83 casos tentados.

Seis casos até 10 de março de 2025

  • Karina Corim (Caarapó) – 4 de fevereiro
  • Vanessa Ricarte (Campo Grande) – 12 de fevereiro
  • Juliana Domingues (Dourados) – 18 de fevereiro
  • Mirielle dos Santos (Água Clara) – 22 de fevereiro
  • Emiliana Mendes (Juti) – 24 de fevereiro
  • Gisele Cristina Oliskowiski (Campo Grande) – 1º de março

Embora não seja necessário que haja uma relação entre a vítima e o agressor para classificar um crime como feminicídio, os dados mostram que a maioria dos casos corresponde ao feminicídio íntimo — ou seja, quando o autor do crime tem algum grau de relacionamento com a vítima. Dos 346 casos registrados em Mato Grosso do Sul, 78 foram praticados por cônjuges, 28 por ex-cônjuges.

Outro dado alarmante é que, desde a promulgação da Lei do Feminicídio, 66 das 79 cidades de MS registraram mortes violentas de mulheres por questões de gênero. Os números representa 83,54% dos municípios. Em contrapartida, apenas 13 municípios do Estado não contabilizaram feminicídios.

A Flourish map

(Infografia – Lethycia Anjos, Midiamax)

Mulher morre por ser mulher?

MS tem média de 56 vítimas de violência por dia (Ilustração: Giovana Gabrielle, Midiamax)

Desde 2015, o assassinato de mulheres por razões de gênero está classificado como crime hediondo. A mudança ocorreu com a criação da Lei 13.104, conhecida como Lei do Feminicídio, sancionada pelo Governo Federal. Em 2024, uma mudança na legislação elevou a 40 anos a pena para o crime.

A lei especifica o feminicídio como homicídios que envolvem violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher. No entanto, é importante esclarecer que o feminicídio não se resume apenas ao ato letal praticado contra uma mulher, pois está inserido em um contexto de violência sistemática e estrutural. Muitas dessas mortes ocorreram dentro de relações afetivas e, por anos, acabavam erroneamente definidas como “crimes passionais”. Além do equívoco jurídico – uma vez que o conceito de ‘crime passional’ não existe na legislação – essa prática ignora a influência do machismo e da cultura patriarcal, que naturalizam a posse e o controle sobre o corpo e a vida das mulheres.

Vale destacar que, por pressão da bancada evangélica, o texto da lei substituiu o termo “gênero” por “sexo”. Na prática, a mudança exclui mulheres trans das políticas de proteção, restringindo a abrangência da legislação. 

Legítima defesa da honra: patriarcado e respaldo jurídico

Reportagem aborto
Tese de defesa da honra culpabilizava mulheres pelo próprio assassinato (Ilustração- Giovana Gabrielle, Midiamax)

Mesmo sendo um avanço nas políticas públicas de proteção às mulheres, a Lei do Feminicídio é, antes de tudo, uma resposta tardia à violência sistêmica. Algo que, por anos, ocorreu com respaldo do Estado. Isso porque historicamente, o sistema patriarcal encontrou amparo no Judiciário brasileiro.

Até o Código Penal de 1830, mulheres acusadas de adultério podiam ser assassinadas por seus parceiros como forma de retaliação, sem a necessidade de flagrante — bastando apenas rumores públicos sobre a suposta traição.

Para justificar esses crimes, a defesa dos criminosos recorria à tese da defesa legítima da honra ou da emoção violenta. Assim, construíam narrativas que desqualificavam a vítima e, muitas vezes, a culpabilizavam pelo próprio assassinato.

Mesmo após sua retirada da legislação, a tese de defesa legítima da honra seguia sendo usada como argumento jurídico. Em 1890, o Código Penal descriminalizou o assassinato em casos cometidos “sob um estado de perturbação dos sentidos”, criando brechas para a impunidade. Meio século depois, em 1940, o atual Código Penal eliminou essa excludente, removendo a previsão explícita de absolvição nesses casos.

No entanto, apenas em 2021 o STF (Supremo Tribunal Federal), por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade da defesa legítima da honra. Conforme o Supremo a tese violava os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Com isso, o uso desse argumento em qualquer fase do processo penal ou no Tribunal do Júri passou a ser considerado nulo. Mas, com inúmeros casos diários no país, a efetividade dessas políticas públicas é colocada em cheque.

Efetividade em xeque

Aborto reportagem
Falhas na justiça perpetuam violência (Ilustração – Giovana Gabrielle, Midiamax)

Diante da alta de casos de violência de gênero, o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) anunciou a ampliação da rede de proteção às mulheres. Uma das iniciativas em andamento é a parceria com o Governo do Estado, que prevê a atuação de policiais militares especializados para acompanhar mulheres que obtiverem medidas protetivas. Conforme o TJ, a medida visa assegurar o afastamento do agressor e garantir a segurança da vítima no retorno ao lar.

Outra medida é a instalação da 4ª Vara de Violência Doméstica e Familiar na Casa da Mulher Brasileira. A nova vara dobrará a capacidade do TJMS para processar pedidos de medidas protetivas e acompanhar casos de violência doméstica. Assim, a nova vara dividirá as atribuições com a 3ª Vara, já existente no local.

“Era necessário que avaliássemos a estrutura física do prédio para termos os espaços necessários. A divisão dos locais de trabalho e circulação facilita ações que demanda projeto e execução”, afirmou o presidente do TJMS, desembargador Dorival Renato Pavan.

A nova estrutura contará com profissionais capacitados para oferecer suporte psicológico e jurídico às vítimas. Além disso, haverá espaços dedicados à assistência social, atendimento psicológico e execução das medidas protetivas. O desafio, no entanto, segue sendo a garantia de que essas medidas sejam efetivamente cumpridas, evitando que falhas no sistema resultem em novas tragédias.

O que fazer em caso de descumprimento da medida protetiva?

Diante do aumento dos casos de descumprimento, o TJMS reforça a importância de que as vítimas denunciem imediatamente qualquer violação. As principais recomendações são:

  • Comunicação imediata com a polícia: Ligar para o 190 ao perceber qualquer descumprimento da medida protetiva, registrando o número do protocolo do atendimento.
  • Registro de novas violações: Comunicar a a Deam ou a delegacia competente e apresentar evidências, como datas e horários dos descumprimentos.
  • Apoio adicional: A Central de Atendimento à Mulher (telefone 180) oferece suporte e orientação, além de encaminhamentos para a Defensoria Pública, se necessário.
  • Contato com o TJMS: Para dúvidas ou orientações, entre em contato com a Ouvidoria pelo telefone (67) 3317-6500 ou pelo e-mail ouvidoria@tjms.jus.br.

Em nota, o TJMS afirmou que trabalha na revisão dos protocolos de concessão de medidas protetivas e na implementação de novas diretrizes para corrigir falhas no sistema. “Ampliamos o quadro de juízes e servidores na nova Vara da Violência Doméstica, com o intuito de garantir um atendimento mais rápido e eficiente às vítimas”.

Fonte: Midiamax.

Compartilhe
Desenvolvido por